domingo, 8 de novembro de 2009

Eduardo Lourenço fala de Pessoa e Camões

A minha sorte é que à minha geração – não foi uma sorte pessoal, foi da minha geração – caiu-lhe na rifa, como se tivesse acabado de nascer naquela altura (embora já viesse também da geração anterior), a descoberta do mundo poético do Pessoa. Que era mais do que poético. Era uma poesia de problematização extremamente profunda e original, por ser aquela que correspondia ao estado do mundo. O mundo estava atravessando uma crise que, de resto, ainda não terminou. Estamos no começo dessa grande transformação que o Ocidente está a sofrer. E de repente encontramos um poeta consciente de todos esses problemas que já se punham nesse momento e que nunca mais deixaram de se pôr. Praticamente até hoje.

Foi uma revolução copérnica, para si.

Exacto. Pelo menos no meu caso foi isso. De repente, toda a poesia, da mesma época ou a anterior, empalideceu ao lado dessa. De resto, não foi só por causa do Pessoa. Seria muito injusto não lhe dizer que a minha primeira paixão foi o Sá-Carneiro. Ainda hoje tenho um grande culto pelo Sá-Carneiro. Tão grande como pela poesia do Pessoa. São dois universos ao mesmo tempo próximos e diferentes. São duas expressões geniais. Não só da poesia. Para mim, a poesia não é essa espécie de canto ornamental da existência humana. Não. A poesia é aquilo que nos põe em contacto com qualquer coisa que até ali nós não víamos, não sentíamos. Passamos a ter uma outra visão, realmente. Distinta da visão natural e ingénua que é a nossa, quando a gente vem a este mundo e enquanto é jovem. A grande poesia é aquela que, de repente, nos oferece um mundo, no qual a vivência deste se altera em cores e dimensões não sonhadas. É a criação de um outro mundo que se acrescenta realmente ao nosso mundo visível. É portanto isso e não os versos que são muito bonitos. Nós temo-los. A nossa poesia é uma poesia muito bela, muito cantante, etc.

Mas não é isso que lhe interessa.

Para mim, os grandes momentos são os dessa gente que criou… No interior, é certo, dessa tradição lírica, consagrada em geral à celebração da natureza, ao relacionamento humano sob a sua forma mais misteriosa e mais sublime, que é a poesia amorosa, mas muitas vezes de um modo não muito problematizante.
Quando chega o Camões, de repente, percebe-se que o Camões corresponde a um momento de uma outra crise. A primeira grande crise do Ocidente cristão. Mesmo estando nós na margem disso, a coisa chegou cá. O que é esse mundo que o Camões captou? É a primeira imersão naquilo que esteve oculto durante Séculos pelo triunfo de uma outra visão comungada por toda a gente, consensual, que é o cristianismo, na sua versão tradicional, até à revolução luterana. E depois com a Reforma. As duas coisas ao mesmo tempo, numa espécie de ressurreição do mundo antigo. Uma pseudo-ressurreição, porque era algo de impossível. Não foi uma ressurreição, foi uma competição com o mundo antigo. Na verdade, era um mal-estar em relação a um mundo que estava já em crise.

Camões representou uma percepção aguda desse mal-estar?

O Camões conheceu isso ou intuiu isso. Mesmo se é muito ortodoxo. Do que eu não duvido. Eu não sou daqueles que pensam que ele dizia essas coisas que lhe atribuem.

O quê?

Uma espécie de heterodoxia na visão do mundo. Bom, é verdade que ele tem uma percepção dos valores humanos que não é essa, tranquila e tranquilizadora, que a ortodoxia, a visão católica normal do mundo inculcava. Há já ali uma grande angústia. Apesar de ele ser o autor da nossa epopeia, há nele uma visão pessimista do mundo. É uma visão que anuncia várias coisas. Como Pessoa, a coisa corresponde a uma altura em que a civilização ocidental começa a viver uma perda de sentido em relação a si própria. O nosso Pessoa volta então a isso tudo. Não há questão nenhuma, ainda hoje, que nos interesse, que de uma maneira ou de outra não esteja na obra do Pessoa.

Chegámos aqui porque eu estava a tentar perceber se esses seus encontros tão intensos com certos autores limitaram, de algum modo, a sua própria forma de expressão literária.

Pois, eu estou a fugir com o rabo à seringa, como se diz. O problema é que, quando os poetas que têm verdadeira vocação poética descobrem um mundo poético - ou são descobertos por esse mundo poético – das duas uma: ou eles dialogam, à sua maneira, com essas obras, tentam aproveitar isso e entrar em diálogo com elas ou continuá-las, ou ficam esmagados e não passam de uma imitação pálida, de um eco daquilo que esses grandes encontros significam.

No seu caso, temeu ser esmagado?

Não. Quer dizer, o sentimento – quer na ordem da expressão, quer na ordem da visão das coisas – é o de que o Pessoa é tão radical, tão extremo, que a ideia de entrar em… A minha ideia, aquilo que me interessou foi perceber. Entender, eu próprio, como é que esse mundo funcionava. Mas não entrar em competição. Coisa que o Pessoa fez em relação aos autores que para ele foram realmente determinantes. Isso já faz parte da genialidade dele. O Pessoa era de uma megalomania infinita. Fabulosa. Mesmo o Jorge de Sena fica muito aquém dele, nesse capítulo.

É necessário megalomania para construir uma grande obra literária?

Por megalomania, quero eu dizer: ele é de uma audácia, de uma ambição prometaica. Penso que o fenómeno Pessoa não tem explicação sem nós pensarmos que aquele menino fez a sua educação na África do Sul, que se impregnou da cultura inglesa, em geral, e em particular dos poetas que amou. Sobretudo Shakespeare. Realmente, ele nasceu no interior do mundo do Shakespeare. Que é um mundo terrífico. Um mundo de que não fica nada. É a primeira expressão de uma espécie de niilismo metafísico, de um poder de sedução fantástico. Porque aquilo nos parece uma visão tão realista da condição humana e do espírito humano, que um sujeito mergulha no Shakespeare e não sai mais desse pélago. É um dos espelhos nos quais a Humanidade se tem reflectido ao longo dos séculos. Mas o engraçado no Pessoa é que ele não se pôs a fazer teatro à Shakespeare. Não. Shakespeare é uma espécie de modelo ideal para Pessoa ser o Shakespeare da época dele. E não um Shakespeare da época do Shakespeare. Ou um romancista do tempo do Balzac. Ele entrava em competição com esses sujeitos. Lia aquilo e dizia: «Eu sou capaz de fazer a mesma coisa que este tipo fez e melhor.» Sempre foi assim.

Excerto da entrevista de Carlos Vaz Marques a Eduardo Lourenço, in LER, Setembro de 2008

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