sábado, 16 de janeiro de 2010

O Professor - Prólogo

Frank McCourt,O Professor,Editorial Presença

PRÓLOGO

Se eu soubesse alguma coisa de Sigmund Freud e de psicanálise,
saberia explicar todos os meus problemas através da minha
infância miserável na Irlanda. Essa infância tirou-me a auto-
-estima, desencadeou espasmos de auto-piedade, paralisou as
mi nhas emoções, tornou-me irritável, invejoso e desrespeitador
da autoridade, atrasou o meu desenvolvimento, limitou as minhas
relações com o sexo oposto, impediu-me de enfrentar o mundo
e tornou-me quase inadaptável à sociedade humana. É um verdadeiro
milagre ter conseguido chegar a professor e mantido essa
profi ssão, e tenho de me dar uma nota muito alta por sobreviver
a todos aqueles anos nas salas de aula de Nova Iorque. Devia haver
uma medalha para pessoas que resistem a uma infância miserável
e se tornam professores, e eu devia ser o primeiro da fi la para
receber não só a medalha como todas as condecorações inerentes
às desgraças subsequentes.
Poderia apontar alguns culpados. Uma infância miserável não é
coisa que aconteça por acaso. Há certas condições que a explicam.
Forças ocultas. Se apontar culpados, faço-o com um espírito de perdão.
Por isso, perdoo às seguintes pessoas: ao Papa Pio XII; aos Ingleses
em geral e ao Rei Jorge VI em particular; ao Cardeal MacRory,
que governou a Irlanda quando eu era criança; ao bispo de Limerick,
que parecia pensar que tudo era pecado; a Eamonn De Valera ex -primeiro-
ministro (Taoiseach) e presidente da Irlanda. De Valera era um
meio espanhol fanático do gaélico (uma espécie de cebola es panhola
num guisado irlandês) que ordenava aos professores de toda a Irlanda
que enfi assem a língua nativa na cabeça dos alunos nem que fosse à
força e que lhes arrancassem qualquer vestígio de curiosidade natural
também à força, se preciso fosse. Causou a todos nós muitas horas de
infelicidade. Era superior e indiferente às marcas pretas e azuis que os
ponteiros dos professores deixavam em várias partes dos nossos jovens
corpos. Também perdoo ao padre que me expulsou do confessionário
quando eu confessei os pecados de masturbação e pequenos roubos
da bolsa da minha mãe, dizendo que eu não estava a demonstrar
estar verdadeiramente arrependido, sobretudo nos pecados da carne.
E, apesar de ter acertado em cheio, a recusa dele em conceder-me a
absolvição representou um perigo tão grande para a minha alma que,
se eu tivesse sido passado a ferro por um camião à saída da igreja, ele
teria sido responsável pela minha condenação eterna. Perdoo a vários
professores severos por me arrancarem da carteira pelas patilhas, por
me baterem frequentemente com o ponteiro, com o cinto e com a
bengala quando eu tropeçava nas respostas sobre o catecismo ou
quando não conseguia dividir mentalmente 937 por 739. Os meus
pais e outros adultos diziam-me que era tudo para meu bem. Perdoo-
-lhes por essas hipocrisias colossais e pergunto a mim próprio onde
estarão neste momento. No Céu? No Inferno? No Purgatório (se é
que ainda existe)?
Até consigo perdoar a mim próprio, apesar de nunca conseguir
deixar de soltar um gemido quando penso em certas fases da minha
vida. Que burro! Tanta timidez! Tanta estupidez! Tantas indecisões
e atrapalhações!
Mas depois vejo também as coisas sob outro ponto de vista.
Passei a infância e a adolescência a examinar a minha consciência e
a concluir que estava num estado permanente de pecado. Era isso
que me ensinavam, era essa a lavagem que faziam ao meu cérebro,
era isso que as condições propiciavam, sendo por isso impossível ter
qualquer espécie de presunção, para mais pertencendo à classe dos
pecadores.
Agora acho que chegou a altura de reconhecer em mim próprio
pelo menos uma virtude: a persistência. Não é tão chique como a
ambição, o talento, o intelecto ou o encanto, mas foi algo que me
acompanhou ao longo de tantos dias e noites.
F. Scott Fitzgerald disse que na vida dos Americanos não há
segundo acto. Ele não viveu tempo suficiente. No meu caso, enganou-
se redondamente.
Durante os meus trinta anos de professor de liceu em Nova Iorque,
ninguém me prestou a mínima atenção a não ser os meus alunos.
No mundo fora da escola, eu era invisível. Depois escrevi um
livro sobre a minha infância e tornei-me o irlandês do momento.
Esperava que o livro explicasse a história da família aos fi lhos e
netos McCourt. Esperava vender umas centenas de exemplares
e ser convidado para discussões em clubes literários. Em vez disso,
saltei para a lista dos best sellers, fui traduzido em trinta línguas e
fiquei estupefacto. O livro foi o meu segundo acto.
Cheguei tarde ao mundo dos livros. Tive aquela sensação de ser
o miúdo novo do bairro. O meu primeiro livro, As Cinzas de Angela,
foi publicado em 1996, quando eu tinha sessenta e seis anos, e o
segundo, Esta É a Minha Terra, em 1999, quando tinha sessenta
e nove anos. Com essa idade, é quase de admirar eu conseguir pegar
na caneta. Alguns dos meus novos amigos (amizades recentes que
ficaram a dever-se à minha ascensão à lista dos best sellers) tinham
publicado livros aos vinte anos. Crianças…
Então, porque é que demorei tanto tempo?
Era professor — foi por isso que demorei tanto. Não na universidade,
onde se tem todo o tempo do mundo para escrever e para
outras distracções, mas em quatro liceus da cidade de Nova Iorque.
(Tenho lido romances sobre a vida de alguns professores universitários,
que parecem tão ocupados com adultérios e brigas académicas
que fico sem perceber como arranjaram tempo para dar algumas
aulas.) Quem dá cinco aulas por dia, cinco dias por semana, não se
sente inclinado a ir para casa esvaziar a cabeça e criar um pouco de
prosa imortal. Ao fim de cinco aulas, a vozearia da sala de aula não
nos sai da cabeça.
Nunca esperei que As Cinzas de Angela atraíssem qualquer
atenção, mas, quando o livro chegou aos tops, passei a ser venerado
pelos media. Fui fotografado centenas de vezes. Era uma novidade
geriátrica com sotaque irlandês. Fui entrevistado para dezenas de
publicações. Conheci governantes, presidentes de Câmara, actores.
Conheci o Presidente Bush pai e o seu fi lho, na altura governador
do Texas. Conheci o Presidente Clinton e Hillary Rodham Clinton.
Conheci Gregory Peck. Conheci o Papa e beijei-lhe o anel. Fui
entrevistado por Sarah, a Duquesa de York. Disse que eu era o seu
primeiro prémio Pullitzer. Eu disse-lhe que era a minha primeira
duquesa. Ela exclamou, Ooh! e perguntou ao operador de câmara,
Apanhaste isto? Apanhaste isto? Fui nomeado para um Grammy
pela leitura do meu livro e estive quase a conhecer o Elton John.
As pessoas passaram a olhar para mim de uma maneira diferente.
Diziam, Ah, foi o senhor que escreveu aquele livro, Por aqui, por
favor, Mr. McCourt, ou Há alguma coisa em que possa ser-lhe útil?
Uma mulher num café pestanejou e disse, Eu vi-o na televisão. Deve
ser importante. Quem é o senhor? Dá-me um autógrafo? Ouviam-
-me. Perguntavam-me a minha opinião sobre a Irlanda, sobre conjuntivite,
sobre a bebida, os dentes, o ensino, a religião, a angústia
existencial dos adolescentes, William Butler Yeats, a literatura
em geral. Que livros vai ler neste Verão? Que livros leu este ano?
O Catolicismo, a escrita, a fome. Falei para assembleias de dentistas,
advogados, oftalmologistas e, claro, professores. Corri mundo
na minha qualidade de irlandês, na minha qualidade de professor,
na minha qualidade de conhecedor de todo o tipo de sofrimento,
como um raio de esperança para os idosos de toda a parte, sempre
desejosos de me contarem as suas histórias.
Fizeram um fi lme baseado em As Cinzas de Angela. Escreva-se
o que se escrever na América, a grande questão é sempre O Filme.
Se tivesse escrito a lista telefónica de Manhattan, haviam de perguntar,
Então e para quando o filme?
Se não tivesse escrito As Cinzas de Angela, teria morrido a
implorar, Só mais um ano, meu Deus, só mais um ano, porque este
livro é o que mais quero fazer na vida, no que resta da minha vida.
Nunca imaginei que viesse a ser um best seller. Imaginei que iria ficar
nas prateleiras das livrarias, mas vi mulheres bonitas a folhearem-
-no e a verterem uma lágrima. Claro que acabavam por comprar o
livro, levavam-no para casa, recostavam-se no divã e liam a minha
história, enquanto bebiam chá de ervas ou um copo de bom xerez.
E depois vinham encomendá-lo para todas as suas amigas.
No livro Esta É a Minha Terra escrevi sobre a minha vida na
América e como me tornei professor. Depois de o livro ser publicado,
fiquei com a sensação incómoda de que tinha prestado pouca
atenção ao trabalho dos professores. Na América, os médicos, os
advogados, os generais, os actores, as pessoas da televisão e os políticos
são admirados e recompensados. Mas os professores não. Os
professores são as sopeiras das profissões. São as pessoas a quem
mandam usar a porta de serviço ou entrar pelas traseiras. São felicitados
por terem tanto tempo livre. São referidos com condescendência
e veneração, mas só em retrospectiva, relembrando os
seus caracóis prateados. Ah, sim, eu tive uma professora de Inglês,
Miss Smith, que foi uma verdadeira inspiração para mim. Nunca
hei-de esquecer a querida Miss Smith. Costumava dizer que, se
tivesse conseguido chegar a uma criança nos seus quarenta anos
como professora, teria valido a pena. Morreria feliz. Mas a inspiradora
professora de Inglês desaparece por entre as sombras e acaba
os seus dias com uma reforma de miséria, a sonhar com a criança
à qual teria chegado. Continua a sonhar, professora. Não vais ser
glorificada.
Pensamos que vamos entrar na sala de aula, ficamos um
momento à espera que se faça silêncio, vemos os alunos abrir os
cadernos e pegar nas canetas, dizemos-lhes o nosso nome, escrevemo-
lo no quadro, começamos a ensinar.
Sobre a secretária temos o plano de estudos de Inglês fornecido
pela escola. Vamos ensinar ortografia, vocabulário, interpretação do
texto, composição, literatura.
Estamos ansiosos por chegar à literatura. Iremos ter discussões
animadas sobre poemas, peças de teatro, ensaios, romances, contos.
As mãos de cento e setenta alunos agitar-se-ão no ar enquanto eles
chamam, Professor McCourt, eu, eu, quero dizer uma coisa.
Esperamos que eles queiram dizer qualquer coisa. Não queremos
que eles se sentem de boca aberta, enquanto nós nos esforçamos
por manter a aula viva.
Faremos um festim com os cadáveres da literatura inglesa e
americana. Como será maravilhoso o tempo que passarmos com
Carlyle e Arnold, com Emerson e Thoreau. Mal podemos esperar
até chegar a Shelley, Keats, Byron e ao bom e velho Walt Whitman.
As nossas aulas exultarão com tanto romantismo, tanta rebeldia,
tanta provocação. Adoraremos as nossas aulas porque, lá no fundo
e nos nossos sonhos, somos uns românticos inveterados. Chegaremos
a ver-nos a nós próprios nas barricadas.
Ao passarem nos corredores, os reitores e outras fi guras de autoridade
ouvirão os sons excitados que saem da nossa sala. Espreitarão
admirados pelo vidro da porta e verão todas aquelas mãos no ar, a
avidez e o entusiasmo no rosto de todos aqueles rapazes e raparigas,
de todos aqueles canalizadores, electricistas, cabeleireiras, carpinteiros,
mecânicos, dactilógrafas e maquinistas.
Seremos nomeados para prémios: Professor do Ano, Professor
do Século. Somos convidados para Washington. Eisenhower
dá -nos um aperto de mão. Os jornais pedem-nos, a nós, meros
professores, a nossa opinião sobre o ensino. Uau. Vamos aparecer
na televisão.
A televisão.
Imagine-se: Um professor na televisão.
Levam-nos a Hollywood para aparecermos em fi lmes sobre a
nossa própria vida. Uma origem humilde, uma infância miserável,
problemas com a igreja (que desafiámos corajosamente), imagens
de nós, sozinhos, num canto, a ler à luz da vela: Chaucer, Shakespeare,
Austen, Dickens. Nós num canto a pestanejarmos, com
os olhos doentes, a ler intrepidamente até que a nossa mãe leva
a vela e diz que, se não pararmos de ler, os olhos vão acabar por
nos cair da cabeça. Imploramos que nos devolva a vela, só faltam
cem páginas de Dombey and Son, mas ela diz, Não, não quero que
andes por Limerick com as pessoas a perguntarem-te como é que
fi caste cego, se ainda há um ano andavas a jogar à bola com os
melhores.
Dizemos que sim à nossa mãe porque conhecemos a canção
O amor de mãe é uma bênção
Onde quer que estejamos
Cuidemos dela enquanto a temos
Porque lhe sentiremos a falta quando partir.
Além disso, é impossível responder a uma mãe representada
no cinema por uma daquelas antigas actrizes irlandesas, Sarah Allgod
ou Una O’Connor, com as suas línguas afi adas e os seus rostos
sofridos. A nossa mãe também tinha aquela poderosa expressão de
sofrimento, mas não há nada como vê-la no grande ecrã a preto e
branco ou a cores.
O papel do nosso pai podia ser representado por Clark Gable
só que a) ele podia não conseguir imitar o sotaque do Norte da
Irlanda do nosso pai e b) seria uma terrível despromoção depois de
E Tudo o Vento Levou que, como bem se lembram, foi proibido na
Irlanda porque, segundo se diz, Rhett Butler levava a mulher, Scarlett,
ao colo pela escada acima até à cama, e isso incomodou os censores
de cinema de Dublin e levou-os a proibir terminantemente o
fi lme. Não, era preciso outro actor para fazer de nosso pai, porque
os censores irlandeses estarão a ver atentamente e seria uma grande
desilusão para as pessoas de Limerick, a nossa cidade, e para o resto
da Irlanda, não terem a oportunidade de verem a história da nossa
infância miserável e do nosso triunfo subsequente como professor
e estrela de cinema.
Mas não será esse o fi m da história. A verdadeira história contará
como acabámos por resistir ao chamamento de Hollywood e
como, depois de noites e noites de jantares bem regados, de festas,
de sermos atraídos para a cama de belas estrelas de cinema, já reconhecidas
e ainda aspirantes ao estrelato, descobrimos o vazio das
suas vidas, descobrimos que elas despejaram sobre nós, recostados
sobre inúmeras almofadas de cetim, os seus corações, descobrimos
em nós um sentimento de culpa ao ouvi-las expressar a sua
admiração por nós, descobrimos que, graças à nossa dedicação aos
nossos alunos nos tornámos um ídolo e um ícone em Hollywood.
Descobrimos que essas estrelas deslumbrantes, já reconhecidas e
ainda aspirantes ao estrelato, estavam arrependidas por se terem deixado
desencaminhar, por terem abraçado o vazio das suas vidas de
Hollywood quando, se tivessem prescindido de tudo isso, poderiam
ter rejubilado diariamente pela integridade da tarefa de ensinar os
futuros operários, homens de negócios e empregados de escritório
da América. Como deve ser bom, dirão elas, acordar de manhã,
saltar alegremente da cama, com a certeza de que, antes do fi m
do dia, teremos cumprido os desígnios de Deus com a juventude
da América, dando-nos por satisfeitos com a nossa magra remuneração,
pois a verdadeira recompensa será o brilho de gratidão
nos olhos ansiosos dos nossos alunos ao entregarem-nos as prendas
que os seus pais nos mandam por admiração e gratidão: bolos, pão,
massas caseiras e, de vez em quando, uma garrafa de vinho feito
com as uvas que crescem nas traseiras das casas das famílias italianas,
as mães e os pais dos nossos cento e setenta alunos da McKee
Vocational and Technical High School, Distrito de Staten Island,
Cidade de Nova Iorque.

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