O PROFESSOR QUE AMAVA A ESCRITA
(pode ser consultado em www.educacao.ufrj.br/revista/indice/.../prof_amava_escrita.pdf )
Trata-se de um livro autobiográfico de Frank McCourt, norte-americano, nascido em 1930, que viveu na Irlanda até retornar aos Estados Unidos em busca de trabalho. Foi estivador, serviu ao exército americano na Alemanha, ganhou uma bolsa de estudos destinada a ex-militares e, com dificuldade, formou-se professor de inglês pela New York University. Sua carreira no magistério começou tarde, em New York, numa escola secundária profissionalizante, tentando ensinar literatura e gramática a futuros eletricistas, encanadores, mecânicos, esteticistas e cabeleireiras – garotada inquieta, com os hormônios explodindo, pronta para testar e dobrar qualquer professorzinho novato.
Após alguns anos de magistério, Frank fez mestrado e passou por uma breve e mal sucedida experiência no ensino superior. Iniciou, mas não conseguiu concluir, um doutorado em literatura, em Dublin. Retornou ao ensino médio profissionalizante. Trabalhou por algum tempo como substituto eventual, cobrindo faltas ou licenças de professores de várias matérias. Sua carreira ia ladeira abaixo, quando uma amiga convidou-o para trabalhar como substituto na conceituada Escola Secundária Stuyvesant, em Nova York, cujo concurso de seleção atraía milhares de candidatos ao ensino médio. Os aprovados eram a nata dos estudantes secundaristas, sérios, motivados, aplicados, que se preparavam para entrar nas melhores universidades. Nesta escola, Mc Court finalmente desabrochou: seu estilo diferente de ensinar, de incentivar a leitura e a escrita, foi reconhecido e apreciado. Ganhou uma vaga no quadro de professores. Além de inglês, ensinou “redação criativa", espécie de oficina literária na qual deu vazão à criatividade e ao talento para contar histórias.
Após 30 anos de magistério, McCourt encerrou sua carreira. Aposentado, aos 66 anos, fez algo que desejava há muito tempo: escreveu um romance sobre sua infância e juventudes miseráveis na Irlanda. Até então só havia publicado uns poucos artigos em revistas literárias.
Aconteceu o improvável: seu primeiro livro, Angela’s ashes, ganhou o Prêmio Pulitzer, o Prêmio do Círculo Nacional de Críticos, entre outros. O autor tornou-se uma celebridade nacional. Seu livro foi adaptado para o cinema e, em 1999, resultou num filme belíssimo, dirigido por Alan Parker e estrelado por Emma Thompson, cujo nome em português é As cinzas de Ângela.
Voltando a Ei, professor, Frank McCourt diz que entre todas as infâncias miseráveis nenhuma era pior que a dos católicos irlandeses, em Dublin, nas primeiras décadas do século XX. Sua história inclui pai alcoólatra, que desertou da família, irmãos que morreram à míngua de comida e remédios, muito frio, chuva e umidade, mãe implorando ajuda à igreja e sendo humilhada. Ao lado disso, a escola católica incutindo fundo a noção de pecado: o pecado original era lavado pela água do batismo, mas a alma infantil rapidamente se tornava suja. Cada criança era convidada pelo professor a dizer como tinha maculado a própria alma com um dos terríveis pecados capitais.
A história de vida de McCourt alimentou-o como escritor, mas antes disso deu- lhe material para as aulas. Quando ingressou no magistério, ficou perdido diante dos adolescentes novayorquinos, e o meio que encontrou para estabelecer contato, para comover, inspirar, interessar e intrigar seus alunos foi contar-lhes pedaços de sua vida. As narrativas orais provavelmente eram mais atraentes que a leitura dos textos literários previstos no programa e, sem dúvida, mais interessantes que a gramática. Assim que o professor anunciava um conteúdo escolar - os termos da oração, a análise do poema de fulano, o “significado profundo” do romance X - os alunos se punham a gemer, a suspirar, a resistir. Como forma de resistência, faziam perguntas ao professor, para provocá- lo a falar da Irlanda ou do seu passado de trabalhador braçal. Frank reconhecia nisso uma velha estratégia juvenil que ele próprio já havia usado - distrair o professor com assuntos fora do programa para evitar que desse aula. Mesmo assim, cedia aos pedidos e, com seu sotaque irlandês carregado, narrava o mundo da pobreza, da miséria e dos maus tratos para adolescentes americanos da classe trabalhadora, que tinham casas aquecidas, comida abundante, armários cheios de roupa, televisão, lanchonetes, quadras de esportes e brigas de gangues. Os
alunos ficavam atentos, faziam perguntas, dialogavam. No magistério, diz Mc Court, a história de sua vida salvou- lhe a vida.
A popularidade junto aos alunos vinha acompanhada de problemas com os supervisores e com os pais. Supervisores que visitavam salas de aula queriam ver alunos escrevendo, ou atentos ao professor, sentados corretamente, tomando notas e levantando a mão antes de fazer uma pergunta. E os alunos? Estes queriam conversar, atirar sanduíches uns nos outros, namorar, devanear, criar caso, ler e escrever o mínimo possível, arranjar desculpas para não apresentar os trabalhos e, se não fosse pedir muito, tirar boas notas. O tempo de escola era um interlúdio antes da entrada no mundo real do trabalho na fábrica e na oficina, do casamento, dos filhos, do divórcio, talvez de outro casamento, dos netos, da velhice. Afinal, por que aprender literatura e
gramática?
Os pais de alunos tinham opiniões diferentes. Apareciam nas reuniões para saber como estava indo o seu Stanley, se era respeitador, se estava aprendendo o necessário para tirar o diploma – aliás, professor, que história é essa de ficar lhes contando a história de sua infância infeliz? – perguntavam. E para que ele precisa aprender a soletrar usufruto, condigno e outras palavras que ninguém conhece?
Os professores veteranos eram pródigos em conselhos: não dê confiança aos alunos, não deixe que saibam coisa alguma a seu respeito, organize-se, transmita a matéria, corrija os exercícios, faça provas, use a caneta vermelha e o livro texto. Se algum aluno tem problemas, mande-o para o orientador pedagógico. Nós não somos psicólogos. Não temos tempo. Não temos nada a ver com isso.
Os professores da Universidade que ensinaram pedagogia e didática nunca falaram de situações insólitas, como sanduíches voadores, ou muito comuns, como garotos em crise de identidade, pais brutais, alunos desmotivados. Ensinavam a dar aulas, mas não sabiam dá-las.
Aos poucos, McCourt foi descobrindo seu jeito de ser professor de inglês e de incentivar alunos recalcitrantes a escrever. Por exemplo, bilhetes de desculpa.
Na escola norte-americana, é praxe os pais enviarem um bilhete justificando faltas, atrasos, deveres de casa e trabalhos não concluídos etc. De modo geral, é preciso ter o chamado bilhete de desculpa para entrar na escola após uma falta.
Um belo dia, enquanto os alunos estavam ocupados com uma prova, McCourt debruçou-se sobre a gaveta em que guardava os bilhetes de desculpas e começou a relê-lo. Já sabia que a maioria deles era escrita pelos próprios alunos.
A gaveta estava repleta de exemplos de um talento americano jamais mencionado em canções, em contos ou em estudos universitários. Como eu pude ignorar aquele tesouro, aquelas pepitas de ouro de ficção, fantasia, criatividade, grandiloqüência, autopiedade, problemas familiares, aquecedores que explodem, tetos que desabam, incêndios que consomem quarteirões inteiros, bebês e bichos de estimação que mijam no dever de casa, nascimentos inesperados, ataques do coração, doenças abortos, assaltos? Ali estava a escrita do ensino médio americano no que tinha de melhor - cruel, real, premente, clara, concisa, mentirosa.(p.93)
McCourt copiou e reproduziu uma série de bilhetes, omitindo os nomes dos autores, e distribuiuos, pedindo que os lessem em voz alta. “Quero que vocês entendam que esta é a primeira turma do mundo que estuda a arte do bilhete de desculpa, a primeira turma de todos os tempos a treinar a redação desses bilhetes” (p. 95). O professor, então, propôs que se imaginassem como adultos e escrevessem um bilhete de desculpa para uma filha de 15 anos por ter tirado notas ruins em inglês. Os alunos começaram a escrever com a maior disposição.
Terminada a tarefa, os alunos pediram mais. Mc Court propôs que escrevessem um bilhete de desculpas de Adão (ou de Eva) para Deus. A proposta foi acolhida com entusiasmo e a atividade se prolongou, com uma lista de personalidades cujas desculpas poderiam ser escritas: Judas, Átila, o Huno, Lee Harvey Oswald, Al Capone, políticos dos Estados Unidos.
Esse projeto foi um sucesso entre os alunos e até mesmo elogiado pelo supervisor, que
recomendou, no entanto, que o professor limitasse os personagens a figuras mais afastadas no tempo: Al Capone, por favor, não deveria ser contemplado.
Aos poucos, os achados de McCourt foram se multiplicando.
Na prestigiada Escola Secundária Stuyvesant, havia uma população heterogênea, não apenas imigrantes de primeira e segunda geração, como nas escolas profissionalizantes, mas também alunos de classe média e classe média alta. Mc Court foi convidado para ensinar redação criativa e inventou outras novidades. Para mostrar que é possível escrever sobre assuntos banais, provocava os alunos perguntando “o que você jantou ontem á noite?” Era o ponto de partida para
histórias que envolviam personagens - pai, mãe, irmãos -, seus modos de viver, seus conflitos.
Graças ao apoio do diretor, do supervisor e ao interesse dos alunos, Mc Court foi se afirmando. Conseguia agora entremear suas famosas narrativas com atividades de leitura e produção de textos. Os alunos criaram uma verdadeira novela a partir da oração “John foi à loja”. Tiveram aulas de redação baseadas em resenhas de restaurantes de uma jornalista especializada em gastronomia e aprenderam a escrever textos similares, que circularam extramuros, sobre os locais que freqüentavam: a lanchonete da escola, as pizzarias da vizinhança, os vendedores ambulantes. Entre outras novidades, Mc Court promoveu a leitura de receitas culinárias estrangeiras que soavam como poemas, com acompanhamento musical.
Tentou mostrar aos alunos interessados em escrever literatura que o escritor está sempre escrevendo.
Estamos escrevendo em todos os momentos da vida. Mesmo nos sonhos a gente está
escrevendo. Quando a gente caminha pelos corredores desta escola encontra diversas
pessoas no caminho e escreve ferozmente dentro da cabeça. Aí está o diretor. É
preciso tomar uma decisão, uma decisão sobre o cumprimento. Vou acenar com a
cabeça? Vou sorrir? Vou dizer, bom dia senhor Baumel? Ou vou simplesmente dizer,
Oi? (...) Há tantas maneiras de dizer oi. Murmurar, gorgear, latir, cantar, bramir, rir, tossir. Uma simples caminhadinha pelo corredor dá material para muitos parágrafos, muitas frases dentro da nossa cabeça, decisões aos montes.
Conclusão
Mc Court retratou, de modo íntimo e pessoal, sua carreira acidentada, sobre a qual refletiu com ironia e franqueza. Texto de leitura agradável, com uso abundante de discurso direto, Ei, professor não é um livro de pedagogia, não é prescritivo, não é acadêmico: é a narrativa inspirada de um bom escritor que foi também professor. O autor tem ouvido finíssimo para a língua oral, seus diálogos são brilhantes. A tradução, que mantém o tom coloquial, foi feita por Rubens Figueiredo, jovem e destacado escritor, também professor de língua portuguesa.
Além de ser uma biografia romanceada, o livro de McCourt é um depoimento curioso e crítico sobre o ensino médio em escolas públicas novayorquinas do fim dos anos 50 aos 80. Descreve o cotidiano das escolas, os rituais, as regras de convivência, as exigências do sistema em relação a alunos e professores, as injustiças, as picuinhas. Não o faz de maneira acadêmica. Narra incidentes da vida escolar de forma tão viva que os personagens ganham corpo e voz, como se os víssemos no cinema. Note-se que Mc Court não viveu o pesadelo atual de matanças ocorridas em escolas norte-americanas. Cita a preocupação dos pais de alunos da Escola Stuveysant com o
possível uso de drogas por seus filhos, fala de um ou outro aluno com problemas nessa área, mas o assunto não mobiliza sua atenção. A última escola em que trabalhou era uma ilha de excelência num sistema educacional que enfrentava e enfrenta problemas gravíssimos.
O autor fala com franqueza de seus conflitos: estava sempre dividido entre o dever de ensinar a matéria e o desejo pungente de dar aulas interessantes, de ser respeitado, amado e admirado pelos alunos. O que mais temia era a indiferença. Revela o sentimento de inferioridade que o perseguiu a vida toda, a consciência de classe como menino pobre na Irlanda, mais tarde trabalhador braçal em New York, e estudante mal sucedido, que não conseguiu acabar o doutorado. Há um pouco de autopiedade nos seus relatos, mas também muito humor. Mc Court não é e não se considera um modelo de professor. Às vezes, ficava saturado, com a cabeça tão
cheia de conversas juvenis que não sabia mais quem era ou o que desejava. Em outros
momentos, descobria-se ansioso para entrar na sala de aula, para continuar o que vinham fazendo de interessante ou propor alguma coisa nova.
Já sabemos que os alunos do ensino médio – no Brasil e nos Estados Unidos - em geral não querem ler os clássicos, desconfiam de textos literários, não imaginam que possam escrever.
Sobre estes assuntos, o modesto professor Mc Court tem algo a ensinar. Ninguém escreve com vontade se não tiver algo a dizer. O mundo está aí para ser lido e escrito, mas é preciso abrir os olhos para o inusitado que se esconde atrás do familiar. As pessoas podem se tornar autores, ou não, mas todos podem conhecer o encantamento da literatura. Como diz o autor na dedicatória:
“Cantem sua música, dancem sua dança, contem suas histórias.”
Marlene Carvalho
MC COURT, Frank. Ei, Professor. Tradução de Rubens Figueiredo. Rio de Janeiro: Editora
Intrínseca, 2006.
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