Rio das Flores, Miguel Sousa Tavares
Por Nadine Almeida
Diogo Ribeira Flores é um proprietário de terras alentejano que possui a "idade do século" e assiste às transformações políticas que Portugal atravessa entre 1900 e 1945: o fim da Monarquia, a instauração da República e o nascimento do Estado Novo e do salazarismo. Seu pai, Manuel Custódio, é um homem conservador e popular na sua comunidade, defensor de uma "única e segura sabedoria: a da continuidade das coisas e a da imutabilidade das verdades de sempre". Este morre um pouco antes do estabelecimento do Estado Novo, em 1926. A partir daí, os seus dois herdeiros, Diogo e seu irmão mais novo, Pedro, passam a encarnar as angústias, contradições e transformações que o novo regime impõe ao país. Estabelece-se assim, entre os dois irmãos, o conflito mais importante do livro, já que eles representam modos de vida absolutamente opostos: Diogo é um homem educado, cosmopolita, crítico severo do salazarismo e de outros regimes ditatoriais emergentes na Europa e Pedro possui o conhecimento intuitivo e prático de quem sempre viveu da sua terra e é um entusiasta do regime salazarista, defensor dos costumes familiares e de certa ordem social.
Estes dois irmãos possuem muito em comum, principalmente o amor pela terra, mas são amores distintos. Pedro é respeitado por todos, pois trabalha na terra e entende-a como ninguém. É um lavrador e "de certa forma, sentia que, em muitos aspectos, a sua vida se confundia com a vida de tudo o resto que ali vivia, árvores ou animais, como se todos fossem filhos da mesma sementeira". A sua orientação política é uma continuidade desses valores. Diogo, por outro lado, contempla o campo com o espanto e a admiração de um visitante. Sob sua responsabilidade ficam, então, os negócios da família em Lisboa e seu afastamento da fazenda aumenta à medida que a situação política em Portugal lhe parece mais insustentável. Por algum tempo, Diogo acredita que poderia assentar e viver como grande proprietário, mas nem a esposa e nem os filhos o afastam do desejo por outras terras, desejo que culminará numa irredutível fascinação pelo Brasil, para onde sonha partir e fugir do "ar espesso e opressivo de um Portugal amordaçado".
Ao longo do livro existem diversas digressões históricas, onde são detalhados os eventos políticos e sociais mais importantes do país, pelo meio das quais o narrador manifesta algumas opiniões. Apesar de ser aparentemente impessoal (na terceira pessoa), Miguel Sousa Tavares comenta eventos e personagens e critica duramente os caminhos políticos de Portugal, os métodos ditatoriais, a vigilância sobre o cidadão e os líderes que considera ineptos, incluindo o próprio D. Sebastião, o rei lendário, descrito como o "mais imbecil, incompetente e irresponsável governante de toda a história de Portugal".
Este livro finaliza-se com Diogo a seguir a mudança e a deixar a mulher, as terras do clã e o Portugal salazarista para começar vida nova ao lado de uma jovem mulata, Benedita, numa fazenda no Vale do Paraíba, no Brasil, em pleno Estado Novo. Pedro, no entanto, assegura a permanência de sua posição de latifundiário e chega a aderir à União Nacional e a lutar ao lado dos franquistas na Guerra Civil Espanhola.
" Há decisões que se tomam e que se lamentam a vida toda e há decisões que se amarga o resto da vida não ter tomado. ”
Apreciação crítica
Recomendaria esta obra porque o enredo é muito consistente e pouco ingénuo e, assim, prende-nos a atenção. O que mais me atraiu neste livro foi o trajecto histórico que o autor realiza, coexistente aos percursos realizados pelas personagens centrais, os irmãos Diogo e Pedro que protagonizavam pólos totalmente opostos no seio familiar, pelas várias ditaduras que se estabeleceram na primeira metade do século XX: a de Salazar em Portugal, Hitler na Alemanha, Getúlio no Brasil e Franco na Espanha. No entanto, também gostei do perfil que traça Salazar, um líder tacanho, mesquinho, fechado em si e ao mundo, ambíguo, gerando um país sem horizontes nem ambições; das vívidas descrições de cenas da guerra civil em Espanha, bem como de algumas curiosidades como a primeira travessia do Atlântico por um dirigível, o Hindenburg, que levou Diogo da Alemanha ao Rio de Janeiro. É um romance com um óptimo conteúdo histórico e bastante didáctico, no entanto, por vezes, pareceu-me que se alongou um pouco nas descrições dos factos históricos. De qualquer das formas, penso que esse facto não é relevante para que o livro perca o seu interesse pois este encontra-se muito bem escrito e o resultado final é bastante bom. Aconselho.
Esta obra fez-me reflectir sobre a liberdade e a alternância política e as suas diferentes ideologias pois Rio das Flores é um mergulho no momento histórico de um mundo marcado pela emergência de regimes autoritários, como, por exemplo, a ditadura salazarista. Assim, o autor faz duras críticas contra todas as formas de atentado à liberdade e fala sobre algumas vidas que se desenvolveram num tempo trágico ainda próximo de nós, mas felizmente cada vez mais distante do nosso próprio tempo. Fico feliz por sermos, hoje em dia, um estado democrático apesar de não funcionarmos da melhor forma.
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